Última alteração: 21-11-2022
Resumo
A inquietante relação entre a memória e o perdão situa a problemática da busca por memória, verdade e justiça nos países do Cone Sul e a difícil temática da reconciliação, tão presente no processo transicional da África do Sul e das recentes discussões na Colômbia e de sua histórica convocatoria a la Paz Grande (COMISIÓN DE LA VERDAD, 2002). Nos processos transicionais nos países do Cone Sul, por sua vez, diversas políticas públicas de memória foram implementadas para dar visibilidade às graves violações aos direitos humanos e como seu reconhecimento pelo Estado.
Como recorte metodológico, esta análise centra-se nas cinco instituições museológicas criadas na Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile, e que se denominam museus de/da memória. O problema de pesquisa é formulado nos seguintes termos: Entre o desejo de recontar o passado ou de encerrá-lo, o esquecimento parece ser mais o seu continuum do que a impossibilidade de o compreender. Delineando a diferenciação entre culpa individual (moral) e responsabilidade coletiva (política) na elaboração do passado e sua compreensão nos Museus de Memória, seria esta reparação simbólica uma condição de possibilidade para o perdão em âmbito público?
A presente comunicação apresenta parte do projeto de tese intitulado Condições de possibilidade do perdão em âmbito público: um estudo dos Museus de Memória como vertigem da consciência feliz, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com o seguinte objetivo: Compreender o perdão no âmbito público e na interligação com a promessa como vertigem da consciência feliz face a realidade de dor e de sofrimentos decorrentes de violações dos direitos humanos, a partir da análise das reivindicações de memória e de esquecimento na cultura material e imaterial nos Museus de Memória do Cone Sul. O presente trabalho está sendo realizado com o apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS).
A pesquisa se insere no contexto dos estudos qualitativos que propõem não quantificar as reivindicações pelo perdão na análise dos museus de/da memória, mas de analisar seus discursos para pensar nas reivindicações por lembrança e esquecimento e seus suportes para a construção de memórias partilhadas. Paralelamente, propõe-se um aprofundamento bibliográfico sobre a questão e o delineamento das bases teóricas e metodológicas para pensar a questão do perdão difícil e da possibilidade ou impossibilidade do perdão a crimes contra a humanidade. São utilizadas fontes bibliográficas, documentais, visitas técnicas e entrevistas orais. Propõe-se uma abordagem “dialética negativa” para compreender o perdão no âmbito público e na interligação com a promessa como vertigem da “consciência feliz”, a partir da análise das reivindicações de memória e do esquecimento na cultura material e imaterial nas cinco instituições museológicas que no Cone Sul se denominam museus de/da memória, que são, a saber: Museo de la Memoria (Rosário/Argentina); Museo de las Memorias: Dictadura y Derechos Humanos (Assunção/Paraguai); Centro Cultural Museo de la Memoria (Montevidéu/Uruguai); Museo de la Memoria y Derechos Humanos (Santiago/Chile); Museo Sitio de Memoria ESMA (Buenos Aires/Argentina).
O perdão pode ser analisado em múltiplos âmbitos, como no religioso ou jurídico. A presente pesquisa está situada na temática do perdão enquanto dimensão política e no seu relacionamento com a responsabilidade coletiva. Importa pensar o perdão em âmbito público frente a retórica de culpa coletiva e de não responsabilidade com o passado como sintomas de uma “consciência feliz” (MARCUSE, 1999).
O perdão, compreendido em sua dimensão individual, corriqueiramente, tem sido excluído das pautas filosóficas sobre a relação entre a memória e o esquecimento. Na filosofia contemporânea, entretanto, o perdão em âmbito público reaparece nas reflexões sobre a elaboração do passado que caracterizam a tentativa de compreender as origens do ofuscamento do âmbito público que possibilitou o Holocausto. Dentre esses, tanto Hannah Arendt (2014) como Paul Ricoeur (2018) enfrentam a temática do perdão em âmbito público e sua interligação com a promessa, enquanto uma confiança na condição humana.
Se é possível afirmar que há uma significativa elaboração teórica sobre a questão do perdão em âmbito público e que esta problemática, em muitos lugares, está relacionada como uma forma de construção da paz e da convivência democrática, não é, contudo, uma questão pacífica nos países do Cone Sul. Entendido como sinônimo de não punição, ou como esquecimento, o perdão está presente na expografia e no discurso dos museus de/da memória como algo a ser combatido. Por exemplo, no Museo de la Memoria de Rosario está presente na expografia em um painel no qual está o brasão e o lema da Asamblea Permanente por los Derechos Humanos que é: “No olvidamos, no perdonamos, no nos reconciliamos”. Também está presente como uma pergunta em um espaço destinado a exposições de curta duração, onde em um painel preto dentre outras perguntas está: “¿Cómo se pide perdón?”. Outro exemplo é a resposta de uma dirigente do Museo de las Memorias: Dictadura y Derechos Humanos de Assunção, no Paraguai, sobre a relação entre o museu e a temática do perdão, a qual ela responde: “No promovemos el Perdón...promovemos la Educación para que nunca más vuelva a suceder, para fortalecer la convivencia democrática, la dignidad de las personas y el respeto a las mismas” (CACERES, 2022, s/p.).
O perdão difícil de Ricoeur, ou impossível de Arendt, no contexto do Cone Sul pode ser entendido como uma questão controversa. Está presente em trabalhos como de Morandini (2012) e de Hilb (2018), dentre outros, mas não é uma perspectiva comumente aceita ou defendida. Ainda de forma propedêutica, a presente pesquisa tem se defrontado com a problemática que envolve por um lado, a dimensão do perdão em âmbito público como uma condição de possibilidade para a consolidação duradoura da democracia (MARTIN, 2018, s/d), e por outro, a dimensão pessoal e religiosa que o perdão tem assumido no Cone Sul. No processo de transição democrática, para exemplificar com o Uruguai, a Argentina e o Chile, foram implantadas políticas de impunidade, tais como a Lei da Caducidade (1986) no Uruguai, a Lei do Ponto Final (1986) e a Lei da Obediência Devida (1987) na Argentina, e o Decreto-Lei nº2.191 (1978) no Chile, conhecida como Lei da Autoanistia. A associação do perdão como uma política de não responsabilização, mesmo em países que essas leis de anistia já foram superadas, parece estar relacionada ao não perdão como aglutinador para a ação política de contraposição ao que seria o esquecimento. Todavia, a inquietante relação entre a memória da ofensa e do dano como condição para o perdão, não apenas no campo interpessoal e comunitário, mas também no campo político e internacional (MARTIN, 2018, s/d), embora seja uma problemática silenciada nas políticas de memória implementadas, está presente uma inquietante relação entre memória e perdão que a mantém atual e necessária. Se não é possível o perdão, a questão a ser enfrentada será a de como construir uma convivência democracia após um dano que é irreparável, e que assim possibilite restabelecer a participação de todos como uma aposta na condição humana também daqueles que foram agentes banais do mal radical.
A pesquisa está em andamento e os resultados ainda são incipientes. E ademais, devido à pandemia de Covid-19 e as restrições sanitárias que implicaram no fechamento de fronteiras e no funcionamento restritivo dos museus em atendimentos presenciais a pesquisadores, não foram possíveis visitações presenciais no ano de 2021. Em uma situação pandêmica menos restritiva, em 2022 foi dado início a essa fase empírica da pesquisa por meio da visitação dos museus de memória na Argentina, sendo eles, o Museo de la Memoria (Rosario/Argentina) e o Museo Sitio de Memoria ESMA (Buenos Aires/ Argentina). Assim, essas duas instituições foram visitadas e apresentam indícios de como a temática do perdão está presente nas políticas de memória. A pesquisa bibliográfica e documental está em andamento, e ainda serão realizadas visitas técnicas aos demais museus de/da memória, os quais até o momento foram consultados e analisados somente de forma não presencial. Foram apresentados nessa comunicação elementos indiciários e norteadores frente aos problemas e aos objetivos da pesquisa, mas que já possibilitam delinear a inquietante relação entre a memória e perdão na perspectiva de consolidação de uma democracia duradoura e da não repetição de tais violações aos direitos humanos. A possibilidade ou impossibilidade do perdão em âmbito público em crimes contra a humanidade permanece uma questão em aberto, uma problemática que encontra novas direções em contextos diferentes.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
ARENDT, H. A condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2014.
CACERES, M. S. Consulta. Perdon. Respuesta Inicial. Correspondência por e-mail entre Giovane Rodrigues Jardim e Maria Stella Caceres em 30 de março de 2022. Arquivos do autor.
COMISIÓN DE LA VERDAD. Informe Final: convocatoria a la PAZ GRANDE. Para el esclarecimiento de la verdad, la convivencia y la no repetición - Hay futuro si hay verdad. Bogotá, Colombia, 2002.
HILB, C. ¿Cómo fundar una comunidad después del crimen?: una reflexión sobre el carácter político del perdón y la reconciliación, a luz de los Juicios a las Juntas en Argentina y de la Comisión de la Verdad y la Reconciliación en Sudáfrica. Rosario: UNR |editora, 2018.
MARCUSE, H. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: Edipro, 2015.
MARTIN, A. La memoría y el perdón: Las comisiones de la verdad y la reconciliación en América Latina (Spanish Edition). Bogotá: Universidad Externado, 2017. E-book.
MORANDINI, N. De la culpa al perdón. Como construir una convivencia democrática sobre las intolerancias del pasado. Buenos Aires: Sudamericana, 2012. E-book.
RICOEUR, P. A Memória, a História, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.